O Cavalo de Turim – A beleza da repetição monótona
- Tiago Almeida
- 8 de jun. de 2016
- 3 min de leitura
Poderia começar, de forma até algo jocosa, como se fosse um anúncio publicitário:
“Está farto do cinema de Hollywood? Cansado da ação, das explosões, dos heróis e dos vilões? Aborrecido com a produção em série e com as estórias repetitivas? Quer um filme que dê valor ao audiovisual e que não seja apenas mais uma estória filmada? Então “O Cavalo de Turim” é para si!”

Tenho a certeza de que o realizador deste filme, o húngaro Béla Tarr, não gostaria nada desta promoção estereotipada, por isso mesmo é que, com todo o respeito, afirmo que é jocosa. Tarr não fez cinema para vender, fez cinema porque tinha algo a dizer e iria, sempre, dizê-lo à sua maneira.
Esta foi a obra com a qual o realizador resolveu terminar a sua carreira, após 40 anos, e existem teorias que que afirmam que este filme é uma analogia entre o fim do mundo e o fim do seu cinema, ou do cinema de qualidade. Mas sejamos sinceros: para a apreciação deste filme, estas teorias pouco ou nada contribuem.
Este filme não se foca na sua estória. O realizador muito menos. A estória é a ponta do iceberg, que todos conseguem ver, mas a verdadeira beleza está abaixo do nível da água, ou neste caso, para lá da perceção do espectador que quer que lhe contem uma história com imagens em movimento. O cinema não é a evolução da banda-desenhada, não é a transição da estória com imagem para a estória com imagem em movimento, até porque o cinema veio primeiro. O cinema é uma outra arte, e Béla Tarr entende perfeitamente isso.
Tarr captou o filme inteiro sem tripé, com trinta longos e cuidados planos a preto e branco, às vezes até com tempos mortos sem personagens em cena, que mantêm o ritmo do filme lento e dão uma sensação de continuidade, como se nada ficasse por ver, e soubéssemos tudo o que há para saber, mesmo ficando com a ideia que nada sabemos. Confuso? Pois claro que sim. A estória deste filme é fragmentada e minimalista. Ao longo de 6 dias seguimos a vida de Ohlsdorfer, um cocheiro, da sua filha e do seu cavalo, que tem uma ligação com uma história sobre o filósofo Friedrich Nietzsche.

Vemos as suas rotinas, vemos o cavalo envelhecer e vemos o seu mundo ser submergido na escuridão. Acreditem, sem contar com um monólogo de um vizinho sobre a destruição e uma visita de uma carruagem de ciganos que tentam roubar água do poço de Ohlsdorfer, nada mais há a saber sobre esta estória. E nada mais é preciso. A estória é apenas uma desculpa para que possamos ver a maravilhosa arte audiovisual de Béla Tarr.
A forma como a câmara vagueia pelo cenário, num chorrilho de movimentos de câmara fundidos, captando as ações repetitivas das personagens, sempre de uma forma diferente da anterior, e passando de enquadramento a enquadramento sem que haja um corte. A forma como, quase sem dizerem palavras, as sensações das personagens são perfeitamente captadas pela câmara, e nós estamos lá, mesmo que nunca lá tenhamos estado. E quando pensamos que ele não poderá fazer com que nos sintamos mais no cenário com as personagens, o que faz Tarr? Efetua um dos seus raros cortes só para nos mostrar o que a personagem vê, colocando um enquadramento dentro de outro enquadramento, quer seja pondo o poço ou a janela no centro da imagem. Tudo o que a narrativa nos diz é reforçado pela imagem e, diga-se, a imagem fala muito mais alto.

E o som? Ah, o som é outra obra-prima. Se pudesse escolher a personagem principal do filme, ignorando completamente a narrativa e as categorias de personagem que esta impõe, ela seria o silêncio. A personagem secundária garantidamente o vento. Existem outros sons nesta obra, e a música repetitiva e quase hipnotizante da autoria de Mihály Vig, é um dos outros que se destacam, mas nada, e reforço que nada mesmo, se compara ao desconcertante silêncio e ao ensurdecedor vento. São estes os verdadeiros responsáveis da sensação apocalíptica deste filme.
Todo este filme parece ter sido trabalhado ao milímetro, de tal forma que mesmo após repetidas visualizações da mesma ação filmada de formas diferente, ainda temos a sensação que algo irá ser diferente desta vez, mesmo tendo a certeza que tudo permanecerá igual e rotineiro. Quero com isto dizer que o cinema de Béla Tarr é “o verdadeiro cinema”? Não. Muito pelo contrário. O cinema de Béla Tarr é “um cinema”, uma forma de fazer cinema, entre muitas outras. O que quero realmente dizer é que o cinema de Béla Tarr é uma experiência audiovisual diferente das experiências que a televisão e os cinemas em geral por norma nos proporcionam, e que, se for vista pela razão certa, será de certeza uma experiência a, e a procurar outras como esta.
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